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LGBT / Dia Nacional da Visibilidade Trans

‘Crianças cis nascem em paz, crianças trans nascem exaustas’

No 'Dia Nacional da Visibilidade Trans', Jared Amarante trouxe uma reflexão sobre crianças trans

Jared Amarante com supervisão de Gabriele Salyna Publicado em 29/01/2023, às 12h00

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‘Crianças cis nascem em paz, crianças trans nascem exaustas’ - Divulgação
‘Crianças cis nascem em paz, crianças trans nascem exaustas’ - Divulgação

Esses dias estava na praça Roosevelt, centro de São Paulo. Era por volta de quase onze horas da noite. Eu quis sair para ‘tomar um ar’, distrair a mente, como às vezes faço aos fins de semana. Acompanhado de um amigo, andávamos e conversávamos quando vi três pessoas paradas me encarando, sorri sem graça quando elas chegaram mais perto. Quase que, ao mesmo tempo, perguntaram: ‘Você é o escritor de Ariel’? Então eu, prontamente, disse: ‘sim, meu livro vende nessa região, inclusive’. Falamos um pouco sobre a obra e fiquei pensativo.

A quem importa dialogar sobre um livro com um título desse tamanho? ‘Ariel – a travessia de um príncipe trans e quilombola’. Essa é a pergunta que me fiz, me faço. O primeiro mês do ano é também o mês Nacional da Visibilidade Trans, mas quantos sabemos disso? Quantos nos engajamos nisso? Quantos nos preocupamos com as nossas crianças trans? É essa é um papo, hoje, de criança para criança, porque é nessa idade que precisamos de reforço da nossa autoestima, necessitamos nos sentir amados, especiais, pertencentes, representados. Mais do que isso, devemos ser protegidos, estimulados a sonhar. E indo além, queremos ser crianças vivas!

Minha criança CIS olha para sua criança TRANS e entende que não estamos no mesmo barco, mas que podemos remar juntos. Porque quando se está num lugar de privilégio, você faz algo porque quem não está lá. Quando você está em uma roda de conversa e ninguém quer falar sobre as pessoas trans, você fala e pede respeito. Quando você não entende muito sobre o assunto, se cala ou vomita transfobia, você dá um google e vai estudar. E quando você não consegue amar um corpo trans, você não precisa. Mas tem que respeitá-lo, porque é um corpo que quer viver, que sonha, que sofre, que quer se realizar, que merece o mundo. E gosto de completar isso com o que disse o psicólogo, Rossandro Klinjey, cuja frase está em uma das orelhas do meu livro: ‘Não preciso do seu amor, mas não abro mão do seu respeito’.

Esse livro convoca as pessoas a refletirem sobre a pluralidade do mundo, dos corpos, pois não podemos negar espaços. Uma criança cis, sobre tudo se for branca, já nasce sendo vista. Estão nas TVs, revistas, novelas, filmes, propagandas. E uma criança trans? Tem que nascer e ‘procurar-se’, pois ela nasce desaparecida. Os lugares não a querem, as pessoas não as validam, e sim as demonizam. Então como deve ser crescer e não se vê? Será que é estar vivo de verdade? Como é ter que lutar, implorar, ir às ruas, enfrentar verdadeiras guerras para ser visto? É uma exaustão. Crianças cis nascem em paz, crianças trans nascem exaustas, ficam exaustam, lutam exaustas. Vivem exaustas, morrem exaustas.

Como escritor e jornalista, ciente dos privilégios, possuindo um corpo cis, branco, magro, eu acredito no conhecimento como algo irrenunciável para o mundo ser melhor, então eu fiz esse livro, porque é preciso sacudir a sociedade, é urgente a reparação histórica, pois estamos atrasados com essa dívida, também, histórica. Corpos cis, eu os convoco a serem melhores, a buscarem conhecimento, a se engajarem, a se chocarem e se revoltarem com a cruel estatística desse país: ‘Conforme o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), que monitora dados no mundo todo, por meio de instituições trans e LGBTQIA+, o Brasil ainda é o pais que mais mata pessoas trans no planeta’.

Somos o país que, em primeiro lugar, pensa em excluir as crianças trans, os adolescentes trans, os adultos trans e, poderia dizer, até os idosos trans, mas essas coletividades têm uma expectativa de vida que muitas vezes não passa dos 35 anos, porque são mortas pelo preconceito, ou cometem suicídio, fruto das agressões, preconceito, desespero, desamparo, força, oportunidades, políticas públicas.

Um livro pode não mudar o mundo, mas muda o mundo de alguém. Eu tenho essa certeza sempre que vejo uma criança trans lendo Ariel e se sentindo parte da realeza, da beleza, da relevância social. Ou quando vejo uma criança cis lendo Ariel e penso que ela pode ser capaz de tornar o mundo melhor. Quero que sejamos incansáveis em apoiarmos a pluralidade da vida. Pois o mundo não se define no binarismo.